Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo

Lucia Santaella

Três tipos de leitores: o contemplativo, o movente e o imersivo

Desde o surgimento dos novos suportes e estruturas para o texto escrito, notadamente o CD-ROM e a estrutura hipermídia, a história do livro e da leitura tem despertado grande interesse em pesquisadores de áreas diversas do conhecimento. Esse interesse intensificou-se com a proliferação crescente das redes de telecomunicação, especialmente a Internet, ligando rizomaticamente todos os pontos do globo. Nesse contexto, junto com as promessas de universalidade e intercâmbio internacional de idéias pregadas pelos utopistas, tem surgido também muita angústia diante das incertezas quanto ao desaparecimento da cultura do livro (ver Beiguelman, 2003; Chartier, 2002: 101-124). Será que o livro no seu formato atual, feito de papel, está fadado a desaparecer como desapareceram os rolos de papiro?Afinal, o livro, como o conhecemos hoje, está longe de ser um mero objeto. Ele foi
instaurador de formas de cultura que lhe são próprias, que incluíram, desde o Renascimento, nada menos do que o desenvolvimento da ciência moderna e a constituição do saber universitário. Além disso, desde a revolução industrial, o incremento das estéticas de impressão e sua fusão com as imagens fotográficas levaram ao aparecimento e multiplicação dos meios impressos de massa: os jornais e as revistas. Que futuro está reservado também a esses meios? Sofreram o mesmo destino do livro?

O LEITOR CONTEMPLATIVO, MEDITATIVO

Esse tipo de leitura nasce da relação íntima entre o leitor e o livro, leitura do manuseio, da intimidade, em retiro voluntário, num espaço retirado e privado, que tem na biblioteca seu lugar de recolhimento, pois o espaço de leitura deve ser separado dos lugares de um divertimento mais mundano. Mesmo quando se dá em tais lugares, o leitor se concentra na sua atividade interior, separando-se do ambiente circundante. É uma atividade de leitores sentados e imóveis, em abandono, desprendidos das circunstâncias externas. Mas esse aparente abandono não deve nos levar a minimizar o fato de que a leitura também é trabalho: por trás da aparente imobilidade, há a produção silenciosa da atividade leitora.

A leitura do livro é, por fim, essencialmente contemplação e ruminação, leitura que pode voltar às páginas, repetidas vezes, que pode ser suspensa imaginativamente para a meditação de um leitor solitário e concentrado.

O LEITOR MOVENTE, FRAGMENTADO

Por tudo isso, para Carvalho (ibid.: 127), a modernidade corresponde a um novo estágio da história humana, "época em que as formas de experimentar e sentir a realidade e a vida sofreram inflexões agudas". Nessa nova realidade, as coisas fragmentam-se sob efeito do transitório, do excessivo e da instabilidade que marcam o psiquismo humano com a tensão nervosa, a velocidade, o superficialismo, a efemeridade, a hiperestesia, tudo isso convergindo para a experiência imediata e solitária do homem moderno.

É nesse ambiente que surge o nosso segundo tipo de leitor, aquele que nasce com o advento do jornal e das multidões nos centros urbanos habitados de signos. É o leitor que foi se ajustando a novos ritmos da atenção, ritmos que passam com igual velocidade de um estado fixo para um móvel. É o leitor treinado nas distrações fugazes e sensações evanescentes cuja percepção se tornou uma atividade instável, de intensidades desiguais. É, enfim, o leitor apressado de linguagens efêmeras, híbridas, misturadas. Mistura que está no cerne do jornal, primeiro grande rival do livro. A impressão mecânica aliada ao telégrafo e à fotografia gerou essa linguagem híbrida, a do jornal, testemunha do cotidiano, fadada a durar o tempo exato daquilo que noticia. Aparece assim, com o jornal, o leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta, mas ágil. Um leitor que precisa esquecer, pelo excesso de estímulos, e na falta do tempo para retê-los. Um leitor de fragmentos, leitor de tiras de jornal e fatias de realidade.

O LEITOR IMERSIVO, VIRTUAL

Diferentemente do leitor do livro, que tem diante de si um objeto manipulável, a tela sobre a qual o texto eletrônico é lido não é mais manuseada diretamente, imediatamente pelo leitor imersivo.

É certo que o leitor da tela guarda certos traços de semelhança com o leitor da Antiguidade. Como no livro em rolo, o texto corre verticalmente, lá, ao ser desdobrado manualmente, aqui, na tela que corre sob a pressão de um botão. Também como o leitor do livro impresso, O leitor imersivo pode utilizar referências como a paginação, o índice, o recorte do texto (Chartier, ibid.: 13). Não obstante esses traços de semelhança, o leitor imersivo é obrigatoriamente mais livre na medida em que, sem a liberdade de escolha entre nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se realiza.


Trata-se, na verdade, de um leitor implodido cuja subjetividade se mescla na hipersubjetividade de infinitos textos num grande caleidoscópico tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter uma outra grande rede numa outra dimensão. Enfim, o que se tem aí é um universo novo que parece realizar o sonho ou alucinação borgiana da biblioteca de Babel, uma biblioteca virtual, mas que funciona como promessa eterna de se tornar real a cada “clique” do mouse.

Adalto Neiva Trindade

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